O céu estava especialmente azul naquela tarde. O calor de março irradiava-se do asfalto e das calçadas, como um sopro, um bafo quente, que subia entre os prédios altos de Copacabana. Verdadeira barreira de concreto que impede a brisa suave do oceano de refrescar a boemia carioca.
Era domingo. Num apartamento de três quartos na Siqueira Campos o zunido do aparelho de ar condicionado tomava o ambiente, ocupando a solidão. Marina não quis ir à praia com sua família. Pai, mãe, irmão mais novo... preferiu o conforto do seu quarto refrigerado, a música, a persiana branca – que isolava de seus olhos a confusão visual de construções disputando cada centímetro de orla. Especulação imobiliária.
Se fosse para ir à Barra, de carro, talvez tivesse se arriscado. Mas não quis disputar um pedacinho de areia com uma multidão compacta e barulhenta. Eram barracas de sol, cadeiras, bolas, redes de vôlei, frescoboll, ambulantes e crianças gritando. Vindos de todos os cantos da Zona Norte, escoando pelo metrô, e descendo do Pavão Pavãozinho, do Cantagalo, da Babilônia, fazendo da areia, o local mais democrático da cidade.
Marina preferiu ficar na internet.
Era domingo. Num apartamento de três quartos na Siqueira Campos o zunido do aparelho de ar condicionado tomava o ambiente, ocupando a solidão. Marina não quis ir à praia com sua família. Pai, mãe, irmão mais novo... preferiu o conforto do seu quarto refrigerado, a música, a persiana branca – que isolava de seus olhos a confusão visual de construções disputando cada centímetro de orla. Especulação imobiliária.
Se fosse para ir à Barra, de carro, talvez tivesse se arriscado. Mas não quis disputar um pedacinho de areia com uma multidão compacta e barulhenta. Eram barracas de sol, cadeiras, bolas, redes de vôlei, frescoboll, ambulantes e crianças gritando. Vindos de todos os cantos da Zona Norte, escoando pelo metrô, e descendo do Pavão Pavãozinho, do Cantagalo, da Babilônia, fazendo da areia, o local mais democrático da cidade.
Marina preferiu ficar na internet.

A pele morena, os olhos castanhos, os cabelos encaracolados, indo abaixo dos ombros. O corpo firme, no auge dos seus dezenove anos, deixando as curvas definidas à mostra pelo short de brim branco e pela regata lilás. Na intimidade do seu território, estava sem sutiã. Nos pés, um par de havaianas rosa choque. Um dos braços tomado por argolas de borracha coloridas e o outro repleto de pulseiras de metal prateado. Um colar de sementes de açaí pendia até abaixo dos seios. Trident de menta sendo dilacerado em mordidas frenéticas.
As mãos ágeis tocavam compulsivamente o teclado. Na tela, piscando incessantemente, janelas de um programa de mensagens instantâneas pareciam testar a capacidade de resposta da jovem. Ao mesmo tempo, conversava com sete, oito pessoas.
No alto do décimo nono andar, ela não ouvia o trânsito, nem o comércio capitalista aberto no sétimo dia.
Suas expressões iam se alterando conforme seus olhos devoravam as letras embaralhadas do dialeto próprio da rede. Franzia a testa, balançava a cabeça, abria largos sorrisos. Gargalhadas não eram raras. Parecia mesmo uma conversação face-a-face.
Foi durante a digitação de mais uma resposta que a borda da janela do programa ficou vermelha. Ela parou e ao clicar nas outras janelas, estas iam ficando rubras também. Começou a pipocar a mensagem “você não pode responder por estar off line”.
- Ai, que saco! Caiu de novo!
Era a terceira vez só naquele dia. A morena fechou as janelas dos programas abertos e mandou a máquina conectar novamente. Das caixinhas de som, não saia o barulhinho de discagem. Na tela, nova mensagem: “linha indisponível”.
Com todo o exagero que a idade permite, Marina tentou milhões de vezes. Nada acontecia. Pegou todos os aparelhos de telefone da casa e todos estavam mudos. Ficou irritada, amargurada, derrotada. Sozinha naquele apartamento quente, só lhe restou a companhia da pipoca de microondas e da barra de chocolate. Não tinha nada que prestasse na TV, não queria mais ouvir aqueles cds. O telefone estava mudo e seu pai não estava em casa para resolver. Ela tinha certeza que com um telefonema esculachando a atendente da compania telefônica, ele restabeleceria a diversão do fim de semana. Como o sol ainda estava a pino, ainda iriam demorar a voltar. Resolveu ler.
Vez ou outra, o silêncio era rompido pelo barulho do elevador no corredor do prédio. No sofá da sala sem refrigeração, ela podia sentir a vibração distante da pulsação do bairro. De vez em quando, uma buzina mais potente entrava pela janela aberta, trazida pelo vento.
Seu celular foi levado pela mãe depois de muita discussão. Assim, ela estava isolada, sentia-se ilhada, abandonada.
As linhas da Nova já envolviam-na num depoimento picante, relato de uma experiência sexual, quando um som distante de telefone tocando começou a incomodá-la. No começo, tocava quatro ou cinco vezes. Mas por fim, parecia que a pessoa do outro lado da linha precisava muito ser atendida. A campainha soava incessantemente, provavelmente até a ligação cair. Por fim, aquele som parecia uma trilha sonora, acompanhando o desenrolar da história nas páginas de papel sulfite. Marina já não conseguia se concentrar. O som invadia sua mente. O volume, destacado pelo silêncio do fim de tarde, parecia cada vez mais alto.
- Será que não perceberam que não há ninguém em casa? Será que não chegava ninguém em casa? Meu Deus! De onde vem esse telefone?
Ela precisava descobrir. A paciência já esgotada, o humor destruído pela falha do seu telefone e alguém que não aproveitava aquela dádiva de uma linha funcionando.
Abriu a porta do apartamento. O som aumentou. O corredor estava tomado por aquele barulho. Todas as demais portas fechadas. Sabia que, dos quatro apartamentos daquele andar, apenas dois eram ocupados, o seu e o da Dona Laura. De onde vinha aquele som? A insistência da chamada ajudava-lhe a continuar procurando. Foi encostando o ouvido de porta em porta e, ao colar a cabeça na lâmina de madeira do número 1903, sentiu um arrepio. Dona Laura havia viajado novamente para a Europa. Tinha mandado desligar o telefone. Havia semanas que o silêncio dominava o apartamento da vizinha, só interrompido pelas visitas da empregada, que vinha molhar as plantas na sexta. O telefone parou de tocar. Ela estava intrigada. Teriam religado o telefone? Será que a simpática viúva de militar estaria retornando e ligou para a empresa de telefone? Mas ela só retornaria na primavera de Portugal, em meados de maio. Quem estaria ali dentro? Mil pensamentos começaram a percorrer sua mente. Enquanto ela estava trancada no quarto, com a música alta, alguém poderia ter entrado no apartamento da vizinha. Mas um ladrão não ligaria o telefone. Teria algum sobrinho da vizinha, contrariando suas ordens, vindo dormir no apartamento?
E seu pai não chegava...
Com a cabeça navegando em conjecturas, seu coração disparou quando o telefone começou a tocar novamente. Num reflexo, se afastou da porta, dando dois passos para trás. As batidas cardíacas eram tão fortes que Marina chegava a engasgar, suas mãos tremiam, um calafrio lhe subia pelas costas, num arrepio, fazendo o suor esfriar. Sua camiseta agora parecia molhada. Cautelosamente, andou novamente até a porta ébano envernizada. Podia ver seu reflexo invertido na maçaneta convexa. Num misto de medo e aventura, encostou o ouvido direito na almofada maciça que se projetava bem no centro do objeto de carpintaria, abaixo do olho mágico. O telefone continuava insistente. Levou a mão direita ma maçaneta, sentindo o metal frio. Do elevador, o barulho de roldanas fazia vibrar todas as paredes do corredor. Ela girou levemente a esfera prateada, fazendo suas pulseiras rolarem sobre si, provocando um tilintar. Forçou a porta pra dentro e... trancada. Respirou aliviada. Apertou a tecla da campainha, mas nenhuma melodia soou. Dona Laura provavelmente mandou desligar a eletricidade também. Mais um indício de que não teria ninguém ali. Voltou pra dentro de seu apartamento e tirou o telefone do gancho. Ainda estava mudo. Foi até a janela da sala e olhou para a Siqueira Campos. A rua é perpendicular à orla, seguindo para o interior do bairro. Lá embaixo, à direita, as luzes da estação do metrô começavam a se ascender, assim como os postes da calçada. Já escurecia. Da janela da vizinha, mesmo fechada, podia ouvir o telefone ainda tocando. Buscava com os olhos algum sinal de seus pais no meio daquela gente toda que seguia para a estação, vindo da praia à esquerda. As duas calçadas estavam tomadas de pedestres ainda em trajes de banho, alguns carregando cadeiras de praia e guarda-sóis, todos seguindo na mesma direção. Seguindo com o olhar pela esquerda, em direção à praia, a Praça Serzedeio Correia ficava na continuação da rua, depois de cruzar a Nossa Senhora de Copacabana, não deixando, de sua janela, enxergar a praia. Marina começava a ficar aflita. Tentou avistar a portaria de seu prédio, mas os aparelhos de ar condicionado e a marquise não deixavam. Só conseguia ver a partir da faixa de asfalto. Ocupada em preocupações, se esqueceu de ligar as luzes do apartamento, onde as sombras já se tornavam mais densas.
Já incorporadas aos sons da cidade, sirenes cruzavam o bairro. Mas dessa vez, Marina se assustou. Seu coração acelerou. Ela buscou com os olhos a origem daqueles zunidos, que abafaram momentaneamente a monotonia do telefone insistente. Avistou três carros da polícia entrando pela contramão na sua rua, zigue-zagueando entre os automóveis, causando pânico em quem passava. Correria, gritos, confusão. Provavelmente ninguém sabia o que estava acontecendo, mas todos queriam se proteger. As viaturas paravam ruidosamente, diante de um edifício, cantando pneus e bloqueando a rua, dividindo-a ao meio. De um lado, os pedestres corriam em direção ao metrô para descer nos túneis e se proteger, as portas da estação parecia se espremer com medo da multidão que avançava enlouquecida. De outro corriam em direção à Nossa Senhora de Copacabana. Marina se deu conta que o edifício diante do qual a polícia parou era o seu. Verdadeiro pânico percorreu todo o seu corpo. Sozinha, ali no alto, isolada. Correu em direção ao interruptor, queria acender todas as luzes do apartamento. Foi quando se deu conta que a energia estava cortada. Correu por todos os cômodos, e nenhuma luz se acendia. Um nó na garganta a impediu de gritar. Agora como queria ter ido à confusão de Copacabana. Como gostaria de estar sendo pisoteada e ter a canga invadida pela areia que os pés dos outros levantariam. Como queria estar junto de sua família. Começou a pensar numa saída. O que poderia fazer? Seria um assalto? Teriam invadido seu prédio? Não tinha ouvido falar em roubo a condomínios no seu bairro. As quadrilhas preferiam atacar em Ipanema ou Leblon. Na porta da sala, tentava enxergar alguma coisa lá fora, no corredor. O telefone ainda tocava no apartamento ao lado. Tudo era escuridão naquele momento. Não ouvia mais o elevador. Não ouvia mais nada além daquela campainha intermitente. Abriu lentamente sua porta, as luzes de emergência da escada estavam acesas, então deduziu que a energia estava cortada no prédio todo. Voltou e trancou a porta. Foi até a cozinha e pegou o interfone, chamou, chamou e nada. Ninguém na portaria. Agora tinha certeza, era um assalto. Em qual andar estariam os bandidos? Quanto tempo demorariam pra chegar até ali? Teriam rendido alguém que ela conhecia? E o Seu Severino, o porteiro? Estaria ferido? Pegou novamente o telefone, nada ainda. Pensou em subir para algum andar mais acima, procurar algum lugar pra se esconder. Mas naquela escuridão... ainda por cima, não sabia se os bandidos já não teriam subido pelo elevador antes da luz ser cortada.
Entre choro e orações, Marina pegou uma lanterna, o telefone sem fio desligado e se enfiou na despensa do quartinho de empregada e fechou a porta por dentro. Que pesadelo! O que iria acontecer com ela? Agora separado por várias paredes, o som do telefone ressurgia de vez em quando, distante e abafado.
Ela começou a ouvir vozes. A porta da cozinha, ali, ao lado da despensa, dava pro corredor do prédio. Passos apressados, portas se abrindo. Eram eles, os assaltantes! – Pensou ela. Alguém forçava a porta da sala. Alguém abriu a porta da sala! A correntinha atravessada até o alisar da porta impedia que a abrisse de imediato. Alguém sacudia a porta, alguém gritava palavras incompreensíveis, alguém gritava seu nome! Seu nome! Assaltantes não saberiam seu nome! Era seu pai! A voz de seu pai invadia o apartamento!
- Marina! Marina!
Ela se levantou do cantinho no qual tinha se esgueirado, abriu a despensa e saiu pela cozinha, alcançando o corredor. Ainda no escuro, ouvindo a voz de seu pai, reconheceu num vulto o seu herói, o seu salvador. Abraçou-o calorosamente, aos prantos. Murilo estava suado, quente, sem fôlego. Dentre os mil pensamentos que passaram pela sua mente, Marina deduziu que seu pai subiu os dezenove andares pela escada.
- Por quê você não atendeu ao telefone? Sua mãe acabou com a bateria do celular tentando falar com você.
Marina não sabia o que falar. O choro embaçava sua visão já precária pelo breu. A respiração ofegante não permitia a articulação de palavras. Entre soluços e fungadas, explicou que o telefone estava mudo, que ouviu barulho no apartamento do lado, que a luz apagou, que a polícia chegou, que seu Severino não atendia, que se escondeu, que entrou em pânico.
Junto com a energia, chegaram sua mãe e seu irmão pelo elevador. Vieram também os policiais, jornalistas, os vizinhos e gente que ela não sabia quem era. Lá embaixo, a rua agora tomada, a multidão curiosa se aglomerava diante do prédio. Mais viaturas, carros da imprensa, até um caminhão dos bombeiros.
O prédio se estendia até a rua de trás, onde haviam estabelecimentos comerciais. Num deles, uma loteria, o alvo dos assaltantes. Tentando desarmar o alarme, os bandidos mexeram nas linhas telefônicas para cortar o contato com a central da empresa de segurança. Confundiram-se e ligaram várias linhas de modo errado. Numa última tentativa, desligaram a energia do prédio.
Na volta da praia, a família de Marina parou para lanchar num fast food, tentaram ligar para ela para convidá-la a descer também. Como ela não atendia, começaram a ficar preocupados. A notícia do assalto se espalhou e chegou na lanchonete onde estavam. Preocupados com a filha, tentavam insistentemente ligar para casa. Chegando no edifício, não puderam subir. Pronto, o pânico estava formado.
Fotografias, declarações, muitas vozes ao mesmo tempo. O prédio estava em polvorosa. Seu Severino foi liberto do almoxarifado na garagem, seu cativeiro. Os bandidos foram pegos no final da Princesa Isabel, numa blitz na entrada do túnel. A energia restabelecida. Somente o telefone continuava mudo.
Com as baterias dos celulares devidamente carregados, o irmãozinho de Marina teve a idéia de ligar pro número de casa. Qual não foi a surpresa da família e a revolta de Marina ao ouvirem um telefone tocar no apartamento vizinho. A atendente da companhia telefônica pediu um prazo de 48 horas para regularizar a situação. Não teve jeito, Marina teve que ir dormir sem poder atualizar seu orkut com os mais recentes acontecimentos. Seu blog ficou sem a foto que o repórter copiou em seu computador. Ninguém saberia a aventura que ela viveu durante algumas horas confinada em seu apartamento.
Com a repercussão da tentativa de assalto na mídia, imagens do prédio foram divulgadas na televisão. Muitos conhecidos e familiares tentaram telefonar para saber notícias. Durante a noite, ouvia-se um telefone, insistentemente, tocando no apartamento ao lado.

*escrito em novembro de 2005.
Indescritível... admiriro demais sua capacidade de enriquecer cada texto com tantos detalhes envolventes. Me senti no apto de Marina, tensa como ela...
ResponderExcluirMônica, sua fã nº 1